01
Jan 11

 

 

Cheguei quase uma hora atrasada á faculdade. Além da visita surpresa do Doutor Jaime, o tempo não estava para ajudar e o trânsito estava um caos. Pior que o costume. Assim, acabei por andar atrasada o resto do dia. Pensei em saltar a hora do almoço e ir directamente para o bar, para a tal audição, mas lembrei-me do que me dissera a Ana e achei melhor não abusar. A última coisa que queria era voltar para o hospital. Assim, tive um bom almoço na cantina da faculdade, o que fez com que me atrasasse mais uma vez para o meu próximo compromisso. Felizmente não fui a única a chegar tarde. O rapaz do baixo também teve um contratempo, e chegou depois de mim, o que me deixou aliviada. Não queria causar má impressão logo no primeiro encontro.

Eram três os rapazes que compunham o resto da banda. O Zé tocava guitarra eléctrica, o João estava no baixo e por fim o Miguel, que tocava bateria. Todos muito simpáticos e puseram-me imediatamente á vontade. Se havia algum receio da minha parte foi  esquecido com tão calorosa recepção que me deram. Quase nem foi preciso cantar. Afinal, o Zé, que era uma espécie de líder da banda, já ouvira falar de mim através do primo, e confiava no juízo deste. Passei o resto da tarde á conversa. Esta foi tão agradável que mal dei pelas horas passarem. Quando cheguei a casa já estava noite, e a Ana já tinha chegado. Ela e a Inês andavam a sair mais cedo para passarem o máximo de tempo comigo. Nenhuma me queria deixar sozinha. O Jorge tinha sido mais uma vez muito flexível nesse aspecto. Também ele ligava todos os dias para saber como eu estava, como me sentia. Parecia um irmão mais velho. Tudo isto me fazia esquecer um pouco os últimos acontecimentos. Parecia que todos me carregavam ao colo, e a verdade é que neste momento estava a gostar bastante que o fizessem.

- Vou ficar uma insuportável com tanto mimo. – Disse, enquanto saboreava o delicioso frango que a Ana tinha preparado para o jantar.

- Espero bem que não. Detesto gente mimada. Mais depressa volto para casa.

Ri-me.

- Tenho novidades… - Disse a Ana com cara de caso.

- Hum! Que tipo de novidades?

- Do tipo estranhas, no mínimo.

- Que aconteceu? – Perguntei já curiosa.

- A Soraia despediu-se.

- Hã?

- Sim. Hoje já não foi trabalhar.

- Mas assim, sem mais nem menos?

- Sim. O estranho disto tudo é que a semana passada tudo era rosas e sorrisos. O habitual, sabes. Ela e a Pat muito amiguinhas, cheias de segredinhos. Esta semana, carrancuda como só ela sabe ser. Nada de grandes falas, nem sequer mandava mais aquelas indirectas que ela adorava mandar com ares de superioridade. E depois, houve lá um almoço com as meninas da claque e ela nem sequer se aproximou da mesa.

- Problemas no paraíso? – Disse, em tom irónico.

- Não sei. Só sei que nunca mais ninguém a viu com a Pat. E depois o D…

Ana deteve-se com o garfo no ar e a boca meio aberta. Percebi que a frase devia meter o David pelo meio, mas optei por não perguntar nada.

- O… Ruben… esteve lá e olhava para ela com cara de poucos amigos.

Percebi que por Ruben, ela queria dizer David. Apesar de estranhar a relação entre ele e o súbito mau humor da Soraia resolvi não perguntar nada, mais uma vez. A última coisa que queria era iniciar uma conversa sobre o David. A Ana continuou.

- Até que ontem, vindo assim do nada, o Bruno disse-nos que era o último dia dela na “catedral”, e que o Jorge já tinha a carta de despedimento dela em cima da secretária.

- Menos uma cobra… - Sussurrei. A Ana ouviu e começou a rir. – Sinceramente, não estou minimamente interessada no que se passa na vida da Soraia, mas se ela e a Pat estão de costas viradas alguma coisa deve ter sido. Mas cada um tem o que merece.

Soei um pouco fria quando disse isto, mas a verdade é que me era indiferente qualquer sofrimento que viesse da Soraia ou qualquer outro membro do clube de fãs da Pat. Depois de tudo o que se passara, era algo que me passava completamente ao lado. E depois não me ia preocupar com coisas que não diziam respeito. Essa fase da minha vida tinha ficado já lá atrás. O meu caminho agora era para a frente.

A Inês juntou-se a nós mais tarde, ao serão. Optei por não contar da visita surpresa do Dr. Jaime. Conhecendo a Inês como conhecia teríamos assunto para o resto da noite. Resolvi guardar para mim esse episódio, contando somente o que se passara na audição e como estava feliz por ter arranjado outro emprego. A Ana ficou preocupada pois achava que seria cansativo demais, mas eu acalmei-a dizendo-lhe que só tocávamos quatro vezes por semana. É claro que não mencionei os horários nem os dias de ensaios. Achei melhor não dizer nada por enquanto. Precisávamos de dinheiro, e só o ordenado dela a entrar não era suficiente. Mais umas semanas assim, e o melhor seria voltar para casa, e isso estava fora de questão. Quando me deitei nessa noite foi com a imagem do Dr. Jaime. Não sabia bem porquê, mas o facto dele demonstrar interesse em mim deixava-me bastante satisfeita. E isso parecia ser só o inicio de qualquer coisa. Nos dias seguintes foram vários os encontros que tivemos. Todos rápidos e aparentemente casuais, apesar de ambos sabermos perfeitamente que esse não era o caso. Eu passei a tomar um caminho diferente sempre que me era possível. Nesse caminho ficava o hospital, e tinha sempre esperança de o encontrar. O mesmo se passava com ele, que começou a tomar o pequeno-almoço numa pastelaria simpática perto da faculdade. A frequência destes encontros foi tal, que a dado momento deixámos as formalidades de lado e dei por mim a tratá-lo por Jaime e a receber telefonemas dele a horas consideradas por muitos, ofensivas. Mas tudo isto teve um efeito bastante regenerador em mim. Parecia que as coisas começavam a entrar nos eixos novamente e desta vez sentia que estava a tomar o caminho certo. Os horários voltaram a estar mais preenchidos. Por uma questão de “timing”, a banda onde estava agora inserida, optara por iniciar o trabalho no clube no inicio do ano. Até lá tinha tempo de aprender e ensaiar as musicas, e conhecer também melhor o ambiente de tudo aquilo que era novo para mim. Na faculdade os ensaios também se intensificaram, devido á aproximação do dia do espectáculo. A Ana voltou a pôr a sua cara de amiga preocupada, e eu voltei a sorrir. E quando demos por isso, o dia da minha apresentação em palco chegou finalmente.

  •            

Espreitei pela cortina ainda fechada para ver como estava o ambiente. Arrependi-me quase imediatamente. Viera mais gente do que eu pensava, e as cadeiras estavam praticamente todas elas ocupadas. O coração começou a bater mais depressa, e pela primeira vez senti o sangue subir e descer-me á face. Isto demonstrava bem o meu estado de espírito naquele momento. Não sabia se havia de perder as forças ou de me envergonhar ainda mais.

- Mel, é melhor ires para o teu lugar. – A Zé tinha vindo chamar-me. -  Mais dois minutos e começa… Mel? Tu estás bem?

Fechei a cortina e fixei os olhos no chão. Ouvi a Zé muito longe dali.

- Rapariga tu estás mais branca que a cal das paredes. Que se passa?

Levantei por fim os olhos e encarei-a.

- Acho que não devia ter espreitado… lá para fora…

- Já percebi… Pois, não o devias ter feito, mas agora já está, por isso recompõe-te. Vais entrar já na primeira cena, e essa expressão não é a melhor.

Respirei fundo e tentei concentrar-me. “Uma artista não se comporta desta maneira, Mel Andrade!” Ergui a cabeça e fui ocupar o lugar que me competia. Faltavam apenas uns segundos para que a cortina levantasse, e na minha mente rezei uma rápida e pequena oração. De olhos ainda fechados, ouvi o sinal e soube que era chegado o momento. Pus um sorriso nos lábios, encostei-me ao pilar que fazia parte do cenário, ajeitei o chapéu, e, quase instintivamente, a voz saiu-me na mesma melodia que ensaiara tantas vezes durante os últimos dois meses.

Havíamos escolhido para peça de final de ano uma adaptação do filme “Moulin Rouge”. Esta escolha devia-se ao facto dos cenários serem bastante apelativos, assim como o guarda-roupa, e as músicas… essas eram de sonho. Como estávamos a ser avaliados, não quisemos deixar nada ao acaso, e a originalidade também não foi esquecida. Assim, em vez de uma imitação amadora de um filme de grande sucesso, optámos por satirizar um pouco toda a história. Alterámos algumas personagens, modificámos algumas letras de músicas, e até a época da história foi retratada numa era mais actual. A mim coubera-me uma das personagens principais, e a meio da primeira música dei-me conta de que era mais difícil conciliar a representação com a dança e o canto. Nos ensaios parecia ser tudo muito mais fácil…

Depois da música de entrada, parei alguns segundos para olhar para a plateia. Os meus olhos correram rapidamente toda a segunda fila até encontrar alguns rostos conhecidos. Lá estavam a Ana, a Inês e o Bruno. Mesmo por trás deles o Jorge e o Jaime, todos com um sorriso de orelha a orelha. Disfarcei um sorriso de contentamento por vê-los ali, e muito subtilmente acenei. Eles perceberam imediatamente o meu sinal. A partir desse momento senti-me muito mais protegida, segura. Estar em cima do palco deixou de ser uma coisa pesada e tornou-se muito mais leve. Consegui descontrair-me muito mais, soltar-me. Até a voz me saía mais limpa, poderosa. Senti-me orgulhosa de mim mesma e comecei realmente a divertir-me. Parecia que nada poderia correr mal. Tudo andava conforme planeado e o público mostrava-se bastante satisfeito.

Chegámos ao intervalo e aproveitei para me refrescar um pouco. Só tínhamos quinze minutos antes de começar a segunda parte, por isso não pude ir ter com o resto do pessoal. Queria muito saber o que estavam a achar do espectáculo até ali. Mais uma vez espreitei pela cortina, pouco antes de entrar em cena, e vi como estavam todos já preparados para a continuação. A Inês e o Bruno pareciam estar em mais uma das suas discussões, a que a Ana tentava pôr alguma ordem. O Jorge e o Jaime tinham um ar mais formal, e mantinham-se calmos nos seus lugares. Perdi-me a olhar para eles. De repente senti algo estranho a invadir-me, como se fosse um aperto no peito. Não sei o quê, mas algo me fez desviar o olhar para um local mais distante. E foi aí que o vi. Para lá das bancadas principais, num dos lugares mais escondidos, sem luz. Não fazia ideia de há quanto tempo estaria ali, se desde o principio ou se acabara de chegar. Só sei que fazia parte do público, o David. O meu David. A razão de tantas alegrias nesse ano, mas também de tantas tristezas. E se antes tinha ficado sem pinga de sangue, agora dava-se o oposto. Sem querer senti-me envergonhada, pouco á vontade… embora não o visse há mais de três semanas senti o coração palpitar mais forte, tal como acontecia cada vez que o via, cada vez que estávamos juntos e ele me tocava e beijava. E eu deixava-me ir, era impossível resistir-lhe tal era o poder que ele tinha em mim. Na minha cabeça eu havia-o renegado, mas no coração… É difícil ordenar algo ao coração. Por muito que tentemos, por muito convencidas que fiquemos, quando este nosso musculo, símbolo da vida não quer é praticamente impossível negar-lhe seja o que for. E a verdade é que o David ainda fazia parte de mim, gravado com fogo e lágrimas, bem no meu ser. Não sei quanto tempo fiquei a observá-lo, tentando encontrar algo que me fizesse achá-lo menos do que antes. Mas não encontrei nada a não ser a mesma perfeição de sempre. Teria ficado assim o resto do tempo, até que ele se levantasse e se fosse embora, e não teria achado um desperdício de tempo. Afinal, ele era ainda o meu David…

- Mel, um minuto e começamos!

Despertei do meu transe e apercebi-me que tinha a garganta mais seca do que no inicio do intervalo. Corri a buscar água, o tempo escasseava. “E agora? O que é que eu faço?”, pensei. Voltei para o palco e esperei que a cortina subisse. Não esperei muito. Felizmente, não era eu a começar a segunda parte. “Preciso de tempo!”. Mas o tempo não resolveu grande coisa, e quando chegou a minha vez gelei completamente. Olhei para o fundo, para o sítio onde eu sabia que o David estava e os nossos olhares cruzaram-se. Ele mantinha uma expressão calma, serena, mas ao reparar que a voz não me saía começou, também ele a demonstrar uma certa ansiedade. Tentei concentrar-me no que estava a fazer e notei que todos os olhares estavam postos na minha pessoa, á espera. A maioria não sabia se tamanha pausa fazia ou não parte do espectáculo, pelas caras confusas que faziam. Pousei os olhos na Ana e na Inês que me faziam sinais, e só então consegui limpar a minha mente e a primeira nota saiu. Atrás dela veio todo o repertório, e sem saber como o medo foi-se, definitivamente. Consegui fazer toda a segunda parte sem mais atrasos, brancas ou enganos. De vez em quando virava o olhar na direcção do David, só para confirmar se ainda lá estava. E sim, ainda… Ficou até ao fim. Só quando a cortina baixou pela última vez deixei de o ver sentado no seu lugar escondido. Voltei para dentro, para trocar de roupa, ansiava por ir ter com os meus amigos. Será que algum deles o tinha visto?

Caminhava pelo estreito corredor que levava à pequena divisão onde eu e outros membros do espectáculo mudávamos de roupa quando vi um vulto encostado á parede. Conhecia bem aquela figura, até de olhos fechados conseguia dizer que era ele, o David. Parei no instante em que o vi, ligeiramente assustada. Ele fitou-me directamente e deu-me aquele sorriso que me derretia e desarmava completamente. Como se fosse preciso isso para me deixar sem forças. Respirei fundo e retomei o meu percurso. O corredor encontrava-se vazio, todos estavam ainda no palco ou nos bastidores. Aproximei-me dele e sorri também.

- Parabéns! – Disse.

- Obrigado!

- Sério, você foi muito bem. Fiquei orgulhoso…

Acenei com a cabeça.

- Como é que soubeste que a peça era hoje?

- Eu tenho as minhas fontes.

- A Inês…

- O Ruben. Ele me falou que o espectáculo era por estes dias e eu liguei p´ra cá, p´ra confirmar o dia.

- Pensei que já estivesses no Brasil.

- Tou indo p´ra lá amanhã. Eu não ia perder isto por nada deste mundo.

- David…

- Eu sei que não existe nada entre a gente, mas isso não quer dizer que a gente não possa ser amigos. E eu vim dar uma força p´ra uma amiga.

- Foste muito simpático.

Baixei a cabeça e fixei a biqueira dos meus sapatos. Não sei qual de nós estava mais constrangido. “ Porque é que não aparece ninguém”, pensei.

- Eu… Tenho de ir. O pessoal já deve estar lá fora á minha espera.

- Claro, eu também já vou indo. O Ruben tá me esperando no carro. Eu só passei p´ra te dar os parabéns e… eu queria te dar uma coisa antes. Algo que eu esqueci de dar.

- David, não…

E antes que eu pudesse terminar a frase, os seus lábios silenciaram-me, e mais uma vez eu deixei-me ir. Que saudades… Voltei a entrar no nosso mundo, o nosso cantinho que sempre me fazia sentir a pessoa mais feliz do mundo. Um arrepio percorreu-me de cima a baixo, e contra qualquer lógica dei por mim perdida nos seus braços, correspondendo ao seu acto repentino. Senti os seus caracóis entrelaçados nos meus dedos, o seu cheiro invadiu-me e deixou-me zonza, atordoada. Que amor era este que me deixava rendida ao mais pequeno gesto de carinho…

Quando nos separámos não tinha palavras que pudessem explicar o meu momento de fraqueza. Mas também não foi preciso. Olhei bem dentro dos seus olhos e vi a sua determinação. A mesma que eu tivera á umas semanas atrás quando lhe dissera que estava tudo acabado. Aquela que se tinha sumido, mal ele se aproximara de mim.

- Agora eu posso dizer adeus.

Continuei a olhá-lo, séria, confusa, saudosa. Ele tinha razão. Nós não nos tínhamos despedido convenientemente. Depois de tudo o que nos tínhamos feito sentir, tudo o que fizéramos, era justo. Afastámo-nos quase pontualmente, como se tivéssemos ensaiado a hora da despedida.

- Adeus! - Disse, olhando-o nos olhos.

- Adeus! – Disse-me no mesmo tom.

A história terminara, a cortina caíra. Despojei-me da minha personagem e segui o meu caminho.

 

 

publicado por nuncamaissaiodaqui às 20:11

comentários:
Lindo!!! Adorei!!!!

O David foi mauzinho!!! Vai lá ter com ela, beija-a e depois diz adeus :P

Adorei mesmo

Bjs e continua
caty_silva a 1 de Janeiro de 2011 às 20:35

adorei...

quero mais...

posta mais por favor...

eles nao se podem separar...

continua...

Ameii..

QuerO maiis!! =D

Eles nãO se pOdem separar! =P

BjnhOo

PS: Passa na miinha se quiseres http://quandomenosseespera-diidii.blogspot.com/
Adriana a 2 de Janeiro de 2011 às 00:14

Que saudades de um capitulo novinho teu.
Muito bom, mesmo muito bom.
Mas eu quero mais :) :) :)
Beijinhos
Elsa a 2 de Janeiro de 2011 às 01:51

Ai!!!!
ADOREI!
Que fofinho!
Kiss
Mary a 2 de Janeiro de 2011 às 13:21

Julguei que tinhas desistido de escrever a fic.
Ainda bem que não =D


Adorei o capítulo.
Ana a 2 de Janeiro de 2011 às 22:55

Vou postar aqui a fan fic da Sandra. Espero que gostem :)
Agradecimento
Muito obrigada a todas que comentam a fan fic :D