Parámos as duas diante da visão descomunal que se impunha á nossa frente. Só tinha ido uma vez assistir a um jogo no estádio da luz e lembro-me da sensação que tive ao avistar o estádio pela primeira vez. Era simplesmente fenomenal e imponente. Estava tão ou mais nervosa do que da primeira vez. Sentia o formigueiro a subir por todo o meu corpo e apetecia-me gritar de tão entusiasmada. Mas continha-me. Tinha ao meu lado a minha melhor amiga, que era lagarto. Ex-Benfiquista que por uma coincidência do destino, tinha começado a frequentar o estádio do Sporting até que por fim se rendera à onda dos leões. E conseguia ver pela expressão que fazia que não estava muito contente. Mas, tal como eu tentava disfarçar o meu entusiasmo, também ela tentava, mal, disfarçar o incómodo que lhe causava estar a entrar em espaço “inimigo”. Parou o jipe á entrada e ambas esperámos que o segurança viesse ter connosco.
- Bom dia! Façam o favor de dizer? – Perguntou com ar desconfiado.
- Bom dia! Nós vamos começar hoje a trabalhar na “catedral da cerveja”. O Sr. Jorge está à nossa espera. Os nossos nomes devem estar por aí. Mel Andrade e Ana Nogueira.
- Ah, sim. Estão aqui. Podem passar. Estacionem daquele lado. Em frente são os lugares reservados aos jogadores e dirigentes.
- Ok! Obrigado.
Ana meteu a primeira, e lá fomos nós.
- Não sei como me deixei convencer a trabalhar aqui. – Resmungou ela, enquanto estacionava num dos poucos lugares vagos.
- Porque precisamos de dinheiro se queremos viver na capital. – respondi.
- É o que não falta por aí são trabalhos… Isto é Lisboa, por amor de Deus. Loja sim, loja não tem um anúncio a dizer “Precisa-se”!
- Pois, mas sabes que não podemos esperar até que te chamem para uma dessas lojas. Precisamos de começar a trabalhar já!
- E tinha de ser aqui.
- Foi o que se arranjou mais rápido. E depois não é assim tão mau.
- hum! Fala por ti.
- Olha Ana, se achas que não consegues por mim tudo bem. Eu não quero que te sintas mal. E o facto de vires comigo nesta aventura já foi loucura suficiente.
- E eu lá te ia deixar vir para aqui sozinha. Ás vezes parece que não me conheces.
- Conheço, conheço. Por isso é que te adoro. – E dirigi-me para a porta do estádio.
- Pois isso. Dá-me graxa. – gritou Ana, mesmo atrás de mim.
Entrámos as duas no estádio pela porta destinada aos funcionários do clube e dirigimo-nos até às escadas. Subimos até ao próximo piso e avistámos logo o famoso restaurante. Entrámos. Àquela hora ainda estava tudo calmo, e as duas únicas pessoas que se encontravam no espaço deviam ser empregados, como nós.
- Bom dia! – Disse o rapaz. – Ainda estamos fechados.
- Nós sabemos. – Respondi! – Nós começamos hoje a trabalhar aqui.
- Ah! Que bom. Ajudantes. – Disse a rapariga que se encontrava atrás do balcão, e quase saltando de imediato por detrás deste. Com um sorriso de orelha a orelha dirigiu-se a nós e esticou-nos a mão em cumprimento. – Eu sou a Inês! E este tolinho aqui ao lado é o Bruno.
- Eh! Não me chames tolo em frente de estranhos.
- Porquê? Assim quando se aperceberem que és mesmo tolinho não vão estranhar tanto.
E começaram ambos numa discussão amigável sobre quem fazia mais disparates. Ana e eu olhámos uma para a outra, um pouco constrangidas pela situação.
- Desculpem! – Acabei por dizer. – Nós queríamos falar com o Sr. Jorge Araújo. Podem dizer-nos onde o podemos encontrar?
- Com quem? Sr. Jorge Araújo? – A expressão de Inês era de quem nunca ouvira falar desse nome.
- Quem é o tolo agora, hã? Nem sabes o nome do teu patrão.
- Por Senhor não. Porque é que não disseram que queriam falar com o Jorge? Assim nunca mais lá ia.
- Ele está lá atrás no escritório. É só seguirem o corredor.
- Obrigado!
Seguimos pelo corredor até á porta e batemos. Lá dentro uma voz mandou-nos entrar. Era a segunda vez que estávamos com o Sr. Jorge. A primeira tinha sido na entrevista, há dois dias atrás. Era um rapaz de trinta e poucos anos, de olhos claros e expressivos, cabelo castanho, estatura média e um pouco forte. O pai era o dono do restaurante mas era o filho quem geria tudo. Sem esboçar um sorriso fez-nos sinal para que nos sentássemos.
-Então Bom dia! Chegaram mesmo a horas. Isso é bom. Pontualidade é importante. Já vos expliquei tudo no outro dia, têm alguma dúvida?
- Não! – Respondemos em coro.
- Óptimo, sendo assim peçam á Inês que está lá fora para vos dar o uniforme e indicar-vos onde se podem trocar. Desculpem mas não posso acompanhá-las. Tenho um dia cheio. Espero que corra tudo bem no vosso primeiro dia.
Agradecemos e dirigimo-nos para a porta.
- ah, Mel! – Chamou. – Qualquer coisa vens falar comigo e só comigo, ok?
- Sim! – respondi, e saímos.
- Disseste-lhe da tua situação?
- Tive de dizer. Tu sabes que não ia puder esconder durante muito tempo. Foi um risco que corri, mas compensou.
- Não me tinhas dito nada… Bom se ele não se opôs, melhor. Vamos lá fardar então.
A Inês parecia ser muito simpática, mas falava pelos cotovelos.
- Vocês não são de cá pois não?
- Nop. Nota-se assim tanto?
- Um bocado. E eu sou alfacinha de gema, portanto noto logo quando o sotaque não é de cá. E são de onde então?
- Somos do Alentejo, de…
- Olha lá, - disse a Ana, já impaciente com aquela conversa – Porque é que não escreves um questionário e nos entregas. Se eu tiver paciência pode ser que te responda…
- Ana!...
- Olha Inês, não gosto que me façam tantas perguntas. Que eu saiba sou maior de idade e sustento-me há vários anos. Eu ainda não te perguntei nada, pois não?
- Porque não quiseste.
- Diz antes porque não deixaste. Ainda não te calaste 2 segundos. É impossível perguntar-te seja o que for. E além disso também não me interessa.
- Desculpa se te ofendi. Eu sou mesmo assim, não é por mal. Mas já não te digo mais nada.
Senti um enorme alívio quando julguei que finalmente se iria calar. A Ana tinha sido um bocado ríspida demais, mas surtira efeito. Ou daí talvez não…
- Do Alentejo, hã? – Disse virando-se só para mim desta vez. – E o que te traz por cá? Não me digas que vieste em busca do teu sonho, que é trabalhar na “Catedral”? Uma vez tivemos cá uma rapariga a trabalhar que me disse que o sonho dela era trabalhar aqui. Quando lhe perguntei porquê disse-me que queria casar com o David Luiz e por isso trabalhar na “Catedral “era meio caminho andado. Foi uma risota geral. Teve cá 2 dias, e lá se foi o sonho.
- Pois, imagino.
- Mas tu não pareces ser do tipo de quem sonha trabalhar aqui. Não sei mas, tens uma certa atitude…
- Eu estou cá a estudar, -respondi sem a encarar. Talvez assim o inquérito terminasse depressa. Não tinha coragem de lhe responder como a Ana. – e preciso de mais uns trocos.
Nesse momento alguns jovens entraram e eu fixei-os na esperança de não ter de responder a mais nada. Pura ilusão. A Ana, para não rebentar, adiantara-se a mim e fora ao seu encontro, deixando-me só com a sugadora de histórias.
- Eu logo vi. E estudas o quê? Em que faculdade estás?
- Estudo na faculdade de artes e Teatro.
- A sério? Isso é fantástico? Qual é o curso? Em que ano já estás?
Começava a doer-me a cabeça e a Voz de Inês fazia eco dentro do meu cérebro.
- Inês! – “Salva”, Pensei!
- Vê se te calas um bocado. Consigo ouvir-te do escritório. Não temos trabalho hoje?
O Sr. Jorge acabara de se transformar no meu herói. Seria eternamente grata a este homem. Juro que mais uns minutos com a Inês e teria pedido demissão.
Chegámos a casa mais mortas que vivas. O primeiro dia tinha decorrido normalmente, e segundo a Inês, só nos dias de jogos é que se tornava mais complicado. Mas nem eu, nem a Ana estávamos habituadas a trabalhar num restaurante e os primeiros tempos iriam ser complicados. Tomámos um banho, comemos qualquer coisa e sentámo-nos no sofá.
- Estás a pensar em quê?
- Em nada de especial. Aliás estou tão cansada nem consigo pensar. – Respondi.
- Não me enganas. Estás a pensar na tua mãe e na tua casa.
Fiquei calada. Sim, era verdade. Estava a pensar na minha casa. Ou melhor, na minha ex-casa. Agora a minha casa era ali, um pequeno apartamento alugado no meio de Lisboa, e a Ana era a minha única família. A única que me entendia. A única que não me tinha julgado ou apontado quando decidi deixar tudo e começar a viver uma nova vida. A única que tivera coragem de me seguir. Sabia que não estava cem por cento de acordo com todas as minhas decisões, mas não o dizia. Compreendia e apoiava-me. E eu sabia que ela jamais me deixaria só.