“Bip-bip-bip! Bip-bip-bip!”
David e eu acordámos ao som do telemóvel dele. Era o Ruben. Este estava preocupado por David não ter chegado ainda ao treino, e dados os últimos acontecimentos pensou que teria acontecido algo.
- Que horas são? – Perguntou com o telemóvel ainda no ouvido.
- Quase 10. – Respondi ao mesmo tempo que me levantava á pressa.
- Grande M****! Fala pró mister que eu tou indo… Tá, tá tudo bem. Te vejo daqui a pouco.
De um salto, David saiu do sofá e começou a vestir-se enquanto eu corri até á cozinha para preparar qualquer coisa para ele comer.
- Tenho leite, pão, cereais e café. – Gritei da cozinha ao abrir a porta do armário de cima. – AH! – David já estava atrás de mim. – Pára de me pregares sustos! – Disse ao mesmo tempo que lhe dava uma palmada no braço. Ele riu e fingiu que o tinha magoado. – Como está a tua mão? Ainda te dói muito?
- Um pouco, mas eu acho que vai dar pra aguentar. – Respondeu, mexendo a mão. Depois, puxou-me para ele e beijou-me nos lábios, muito levemente. – Amanhã tou indo com o resto do time p´ra fora. Fim-de-semana tem jogo na Itália… Você vai ficar bem? Não tou gostando dessa história de você ir sozinha p´ra falar com esse doido varrido desse doutorzinho.
- Isso é um assunto meu. Sou eu que tenho de resolver.
- Mas você podia esperar eu sair e a gente ia junto.
- É melhor não, David. Isso sim, ia dar confusão. Vê só o que aconteceu ontem á noite.
David apertou-me contra o seu peito e eu pude ouvir o seu coração bater. A sua mão esquerda acariciava-me os cabelos.
- Me liga assim que você terminar de falar com ele. Eu vou ficar com o celular, vigiando.
- Não vai acontecer nada. Podes ir para o treino sossegado. Aliás, já eras para estar a caminho.
- Ih, Caramba! Vou ter de voar…
- Então e não comes nada?
- Cê tem uma fruta aí?
- Tenho. Serve uma maça?
- Vai ter que servir. – Disse, enquanto procurava as chaves do carro. Depois virou para trás e, com os braços á volta da minha cintura, levantou-me até ficar da sua altura. Beijou-me. – Te amo!
- Eu também “te amo”!
- Hum! Seu sotaque brasileiro não tá com nada. Tou vendo que vou ter de ensinar você…
- Vai-te embora…
- Tou indo! – Pôs-me no chão e virou em direcção á porta, mas antes de lá chegar voltou-se novamente para trás, esbarrando comigo e beijando-me outra vez.
- Vai-te embora! – Ordenei novamente e ele pareceu obedecer. Abriu a porta e no mesmo instante em que pôs o pé de fora, tornou a virar-se e a beijar-me… mais uma vez.
- Hum! Vai…- Empurrei-o!
- Embora! Já sei! Tou indo! – E desceu as escadas a correr. Eu fiquei a observá-lo até finalmente desaparecer. Depois, fui para o banho preparar-me para um dia difícil.
Cheguei ao hospital antes do meio-dia. Resolvi não avisar que ia ou o Jaime poderia querer marcar noutro sítio, e a verdade é que não me sentia segura sozinha com ele. Se fosse só pelo que tinha acontecido entre nós os dois, eu até poderia entender e já tinha até perdoado. Mas depois do que o David me contou, dos escândalos que ele fez, das ameaças e agressões, era claro para mim que o Jaime não era de maneira alguma a pessoa que eu pensava que fosse. Perguntava-me até quem era o homem com quem eu tinha estado nestes últimos 3 meses, pois era evidente que fora tudo uma farsa. Mantinha no entanto a esperança de que ainda havia um pouco do ser humano que eu conheci, e que era com esse que eu iria conversar, num diálogo civilizado e calmo.
Subi até ao piso do gabinete e dirigi-me á secretária. Á medida que me aproximava lembrava-me das palavras de David, e a sua oferta em ir comigo parecia-me cada vez mais tentadora. “ Não, Mel! O David não é para aqui chamado. Se ele viesse, aí sim isto dava para o torto. Assim sabe Deus…”, pensava.
- Bom dia!
- Bom dia, Mel! Vieste falar com o Dr. Jaime? Não sei se ele está na sala…
A voz de Susana soava um pouco nervosa, como se quisesse dizer mais qualquer coisa.
- Não faz mal. Eu espero.
E sentei-me na sala de espera. Esta estava cheia, como de costume, e as conversas misturavam-se entre elas. Geralmente prestava atenção a uma ou outra coisa de que se falava. Afinal, todos os que ali estavam partilhavam algo em comum e falar de um caso poderia ajudar outro, ou pelo menos esclarecer ou iluminar. Mas naquele momento os meus pensamentos estavam longe, muito longe dali. De repente lembrei-me de algo. O Jaime era o médico que agora me acompanhava. Era ele que tratava de mim quando tinha alguma recaída. Dada a situação, isso teria de mudar. “ Mais uma!”. Assim que terminasse de falar com ele teria de ir falar com o Dr. Barros. Este iria interrogar-me sobre os motivos que me levaram a abandonar o Doutor Jaime, e eu teria de pensar muito bem sobre o que dizer. Não queria prejudicar o trabalho dele, as minhas razões era pessoais e ele era um excelente profissional. Mas temia que se lhe contasse sobre os últimos acontecimentos isso viesse a acontecer. “ Bolas! Não estou com cabeça para pensar em tudo ao mesmo tempo.”.
- Mel? – A voz de Jaime afastou-me destes pensamentos. A sua figura surgiu-me em frente á porta da sala onde esperava, de bata branca e cara igualmente pálida. – A Susana avisou-me que estavas aqui.
Levantei-me e avancei na sua direcção.
- Sim… Podemos falar? – Perguntei a medo, uma vez que a minha vontade era precisamente o contrário. Ele respondeu-me num tom calmo mas firme.
- Claro! – Disse, fazendo sinal para eu passar.
Entrei no seu gabinete e mantive-me de pé. As mãos transpiravam apesar do frio que fazia, e eu sentia alguma dificuldade em respirar. Tentei manter a calma para a voz não me falhar. Mais uma vez foi ele quem falou primeiro, fazendo sinal para me sentar.
- Muito bem! Fala!
- Jaime… eu vim aqui porque… Bem, eu acho que dadas as circunstâncias… Depois do que aconteceu, e…
- Queres parar de rodear e falar de uma vez?
Abri a boca para recomeçar, mas ele interrompeu-me:
- Não! Deixa estar, não precisas dizer nada. Afinal, ambos sabemos porque é que tu estás aqui, não é verdade?
- Sim, sabemos. Mas também estavas á espera do quê? Depois do que tu fizeste…
- Depois do que eu fiz? E o que tu fizeste? – O tom de voz de Jaime começava a alterar-se. – Preferiste ficar do lado daquele “Playboy”… Abandonaste-me completamente, a mim, que sempre te apoiei. E um sacana daqueles que só te fez mal, foi esse que tu escolheste. Aquele imbecil. Sabias que tenho a polícia á perna por causa dele?
- O quê?
- Sim! Vieram hoje aqui à minha procura. No meu local de trabalho, á frente dos meus colegas. Intimaram-me. Disseram uma carrada de mentiras, entregaram-me a carta de intimação e foram-se embora. Não bastou ser humilhado pela pessoa que eu amo, também tiveram de me vir espezinhar aqui. Quem é que ele pensa que é?
Eu comecei a ficar nervosa e levantei-me da cadeira. A conversa estava a tomar um rumo completamente inesperado, e eu não estava a gostar nada daquilo.
- Mas Jaime, foste tu que o procuraste e ameaçaste. E depois destruíste o carro do Ruben…
- E quem é que te contou isso? Foi ele? Estavas lá? Como é que sabes que ele não está a mentir?
- O David não mente! – Acabei por gritar também, arrependendo-me quase de seguida ao ver a expressão de fúria que tomou a sua feição.
- O David não mente? É claro que tu o ias defender. Também estás contra mim…
- Eu não estou contra ninguém, eu só …
- Vieste aqui terminar tudo, não foi? – Interrompeu-me mais uma vez, mas a voz voltou a sair-lhe calma. – Pois bem, considera tudo acabado entre nós. Agora, se não te importas… sai!
Desta vez não respondi. Não queria assistir a mais um acesso de fúria desmedida da sua parte e decidi fazer o que me pediu. Tinha ido pôr um ponto final na nossa relação, e apesar da conversa não ter saído exactamente como imaginei, fora isso que fizera. Estava tudo acabado. Abri a porta e sai sem dizer palavra. Nem sequer me virei para ver como tinha ficado. Na minha mente só um pensamento: “ Mas que homem foi este com quem me envolvi?” Seguia pelo corredor em direcção ao elevador quando uma voz me chamou. Era a secretária, Susana.
- Mel! O Doutor Barros quer falar consigo, se puder.
“ O Dr. Barros!” Esquecera-me completamente dele. Tal era a minha ânsia em sair dali para fora. Acenei com a cabeça e segui no sentido inverso até chegar á sala do meu antigo, e agora futuro médico.
- Mel! A Susana disse-me que estava aqui. Sente-se. Precisamos de falar.
Mal entrei no jipe, deixei-me imediatamente cair no banco. O que acabara de ouvir deixara-me perplexa e sem reacção. Ainda nem conseguia acreditar. Não tinha noção… Fiquei assim por alguns minutos, a tentar digerir tanta e surpreendente informação. Só quando tive certeza de ter recuperado todos os meus sentidos, meti a chave na ignição e… O telemóvel tocou! Ainda atarantada, procurei pelo mesmo na mala e atendi. Era a Inês.
- “Mel! Então rapariga, onde é que tu estás?”
- Estou a sair do Curry Cabral.
- “Então já resolveste tudo?”
- Sim… acho que sim!
_ “…”
- É uma história tão comprida, Inês…
- “Ok! Fazemos assim. Mal eu acabe o meu turno vou direitinha para tua casa e pomos as novidades em dia. Passo pelo restaurante chinês e levo-nos o jantar. Parece-te bem?”
Sorri. Ainda não me tinha dado conta do quanto precisava de companhia, e senti-me aliviada pela sugestão.
- Parece-me óptimo! – E desligámos. Mandei o telemóvel para cima do banco e preparei-me para sair então, mas o aparelho tocou novamente. “ Mas será possível que eu não vou conseguir sair daqui hoje”, pensei um pouco irritada. Olhei para o visor. Era o David.
- Sim!
- “ Mel! Onde você está? Porque não me ligou?”
- Porque só estou a sair do hospital agora… ou pelo menos a tentar.
- “…” Você está bem? Ele fez alguma coisa com você?”
- Não! Está tudo… bem!
- “ Mesmo? Pela sua voz não parece, não!”
- Só estou cansada. Foi mais difícil do que eu pensava.
- “ Eu tou saindo do treino daqui a pouco e vou direto pra sua casa.”
- Não, David! Não me leves a mal mas eu hoje preciso de pôr as ideias no lugar. E depois a Inês vai lá ter assim que sair, ela faz-me companhia.
- “ Pôxa!, Que fora!”
- Não é “fora”. A gente precisa de conversar sobre um montão de coisas, mas hoje não é o melhor dia. Eu preciso deste tempo agora, entendes?
- “ Tem certeza que é isso que você quer?”
- Tenho! Tu partes amanhã para a Itália, tens de estar concentrado só no jogo. Quando voltares, a gente conversa com calma sobre a nossa situação.
David fez uma pausa de alguns segundos antes de responder.
- “ Tá bom. Se é isso que você quer…”
- É, é isso que eu quero. – Menti. A verdade é que estava mortinha para cair nos braços dele, mas o melhor agora era ir com calma.
- “ Me espera… assim que eu voltar eu te encontro.”
Sorri.
- David… eu…
- “ Eu também!”
Desligámos e pude finalmente seguir o caminho para casa.